GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


O SUCESSOR

 

Elegeu-se prefeito. Diplomado, estranhou a ausência do antecessor na posse. No dia três do primeiro mês do mandato chegou ansioso à prefeitura. Um homem veio abrir a porta. Pediu que entrasse, cumprimentando o prefeito pela eleição e desejando-lhe sucesso na gestão da cidade.

A prefeitura estava vazia e silenciosa, mas achou por bem não comentar nada ao homem que mostrava ao prefeito o caminho do gabinete como se não conhecesse; afinal, pensou que estivesse chegado muito cedo para as atividades.

Caminhou por passos lentos, seguindo o funcionário. As paredes escuras do corredor o espreitavam. A sala onde antes havia a recepção estava desocupada. No chão, os fios soltos do sistema de telefonia.

- O gabinete é ali, doutor! – disse o homem indicando a porta escura e fechada à sua frente. – Pode entrar, não está trancada. Levaram embora a maçaneta.

Empurrou a porta devagar. Estendeu o braço para alcançar o interruptor. O homem adiantou-se.

- Não há luz. Está cortada faz tempo.

E foi puxando uma a uma as lonas escuras que cobriam as vidraças do gabinete.

Não havia móveis algum na sala. Nem mesa, nem computador, nem telefone, nem armários. Apenas uma cadeira com os estofados esturricados fora deixada para trás.

- Deixaram apenas a cadeira – disse o prefeito com a intenção de aproximar-se. O homem o deteve, segurando-o pelo braço.

- Cuidado prefeito, o buraco!

Sentiu um arrepio na espinha quando viu o buraco no meio da sala e por pouco não caíra dentro.

- Pensei fosse o desenho de um mosaico no piso.

Da beirada tentou enxergar o fundo, mas a parede imunda foi escurecendo a medida que se aprofundava até mergulhar de vez na escuridão do buraco.

- Para que serve este buraco aí? – perguntou o prefeito.

- Não me disseram não senhor! Mas ele está aí, do jeito que deixaram.

- Pelo menos ficou uma cadeira – disse voltando-se para o objeto deixado no canto.

- Fosse o senhor, não sentava nela não!

- E por quê? Preciso de um lugar para despachar...

- Esta cadeira, doutor, é amaldiçoada. Quem senta nela, nunca mais quer sair de cima...

O prefeito sorriu olhando novamente para a cadeira.

- Se der uma reformada, fica novinha em folha!

E quando se voltou para o homem já não estava mais ali. Tragado que fora pelo buraco.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012


Dia das Crianças

 

O dia das crianças começou com o sol brincando na rua. O barulho das portas de aço sendo içadas por um ferrolho a despertou. E arrastando os miúdos da sombra da marquise, um agarrado ao peito e outro com o esqueleto estalando no chão duro, foram aquecer-se sob o sol.

Enquanto o menor sugava a mãe, o outro, de pé, observava a movimentação do comércio. Já sabia que era dia das crianças. Por dias ouvia os carros de som que passavam anunciando a data especial, via outras crianças saindo felizes das lojas com seus pais e volumosos pacotes de presentes. Distraiu-se com o gordo comerciante do outro lado da rua colocando para fora da loja a caixa de som que desde que saíram de casa sob as ameaças do pai bêbado, tocava a mesma música.

De repente a rua estava cheia de movimento. A mãe encolhera as pernas para não atrapalhar os passantes e estendera o lenço como salvas. De vez em quando uma moeda caía sobre o lenço encardido.

- Menino, não vá longe – a voz fraca, em jejum.

- Mamãe, quando o papai vem buscar a gente? Ele não está demorando?

- Seu pai não vem mais, agora vamos viver aqui até um anjo nos arrumar um lugar para ficar – e pousou uma das mãos sobre o maxilar que, apesar de todo o tempo passado, ainda doía como se estivesse apanhado ontem.

O menor dormia nos braços da mãe, alimentado.

- Mamãe, quero ir para casa! - e esboçou um choro truncado pela realidade.

- Não comece. A gente não pode voltar lá. Seu pai mata a gente! Vai brincar, vai! Quando juntar mais algum dinheiro, compro um copo de leite.

O menino então se voltou para o meio fio da calçada procurando pelo chão algum objeto que o divertisse. Encontrou uma bolinha de papel e começou a chutá-la. O comerciante anunciava a queima do estoque de brinquedos naquele último dia de oferta, afinal já era dia das crianças.

- Um dia vou ter uma bola de verdade, mamãe?

- Quem sabe um dia um anjo não lhe dê uma de presente – disse desconcertada.

O menino suspendeu o chute no ar, franziu a testa, arregalou os olhos famintos.

- Mãe, o que é anjo?

A mulher riu. Como explicaria ao filho de três anos o que era um anjo? Arriscou-se.

- Anjo, é um homem de asas que vem do céu.

Depois de algumas horas o menino ganhou um copo de leite e um pão, tomados na padaria. A mãe retornou com os meninos sob a marquise. O sol guardava seus brinquedos. O comércio cerrava suas portas. Um cachorro abandonado do meio da rua observava a mulher e os filhos. E então uma perua velha aproximou-se devagar. O menino já estava encostado na pedra morna da parede, sentado ao chão, quando viu o veículo. Não era carro novo. A perua estava toda remendada, o para-choque amarrado com arames e tiras de tecidos. O escapamento soltava uma fumaça negra e espessa. O motor estalava em soluços.

A perua foi estacionada diante do menino, do outro lado da calçada. Um homem desceu. Vestia uma calça surrada e uma camisa, de tão desgastada dava para ver o corpo. A sandália de couro surrada arrastava no chão fazendo barulho. O homem tinha dificuldade para andar. O menino observava tudo isso e nem notara que o velho trazia um pacote colorido em uma das mãos. E uma bola de plástico multicolorido na outra.

Quando se deu conta, o menino estava com a bola sob o braço. E sua mãe desembrulhava o pacote onde havia outros brinquedos. De repente a mãe encontrou um saquinho plástico com duas caixas laminadas cheias de comida. Ao levantar a cabeça para agradecer ao homem, já não estava mais ali.

- Este homem é um anjo! – disse a mãe, aliviada.

E o miúdo, lembrando-se do que a mãe lhe ensinara, olhou para o céu procurando os vestígios. Nem uma pena havia se soltado. Então se virou para a rua e pôde ver a perua engazopando, soltando fumaça, até que sumiu na esquina. E quando não se ouvia mais os estalos do motor...

- Mamãe, porque não pediu uma casa para ele?

 

 

 

O SORRISO BOBO

 

A desgraça deixa compaixão por onde passa. E não precisa ser gigantesca para nos arrebatar de piedade.

Dias desses fui intimado para uma audiência. Tentativa de conciliação. Um casal havia proposto ação de modificação de guarda contra meu cliente. O casal eram tios da criança. O pai, meu cliente, estava preso por assalto, latrocínio e mais uma infinidade de outros maus feitos. Por conta da prisão fui nomeado curador especial para defender seus interesses.

Todos estavam no Fórum. O casal com a criança e a advogada que os representava. Estava sozinho e já perdia a esperança de que o requerido viesse, quando o camburão encostou. Escolta armada. O homem era violento, muitos crimes nas costas, diziam. Folha corrida comprida feito papel higiênico. Transferiram-no para cadeia do Fórum até que o juiz determinou se instalasse a audiência.

Estávamos sentados ao redor da mesa quando meu cliente entrou na sala, puxado pelo braço por um guarda impaciente, enquanto o outro o acompanhava os passos com a mão sobre o coldre.

O homem estava algemado. E os pés acorrentados de modo que andava arrastando os chinelos. Vinha de uniforme laranja do presídio e um sorriso bobo. Os olhos faiscavam de felicidade. A menina desvencilhou-se dos braços da tia e correu para o lado do preso que balançava seus guizos.

Enquanto a menina corria, notei que o preso tinha o dente da frente quebrado, meio de quina, o que lhe dava uma expressão abobalhada.

O homem finalmente sentou-se ao meu lado com a filhinha entre as pernas. Cumprimentou-me com o mesmo sorriso ingênuo que abriu ao ver a filha correr em sua direção. Depois cumprimentou a irmã e o cunhado; e por fim, a advogada.

O juiz o interrompeu para esclarecer o porquê havia determinado sua presença. O preso concordava com o que o juiz lhe falava e notei que estava sinceramente feliz por estar ali. O magistrado então mandou o escrevente redigir o termo e retirou-se da sala. Os guardas relaxaram a postura. Um deles, inclusive, debruçou-se sobre os cancelos que separava o juiz dos jurisdicionados, observando o preso brincando com sua filha, que curiosa perguntava por que o papai estava com aquelas pulseiras.

O escrivão, percebendo a ternura do momento, deixou-se demorar um pouco mais na redação do termo de audiência. O preso concordava em transferir a guarda da filha para a irmã e o cunhado.

- E a mãe da menina? – perguntei-lhe.

- Sumiu doutor. Abandonou a menina comigo ainda bebê, e caiu no mundo. Coisa mais triste, né, doutor; a mãe abandonar a própria filha – e abriu aquele sorriso bobo, fixando em mim o olhar puro dos cães de rua.

Assinamos o termo e os guardas voltaram a arrastar meu cliente para a cela. Mas antes de deixar a sala, com o mesmo riso nos olhos, agradeceu:

- Obrigado por me dar este momento feliz.

Aquela tarde, saí mais leve do Fórum. E por muitos anos vou me lembrar do sorriso bobo daquele homem, do olhar puro e inocente como o dos cachorros. E esta lembrança me ajudará a manter a fé na humanidade.

 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O CONFINAMENTO

Bastou o pombo pousar no duto do ar condicionado para me descobrir um homem confinado.
Há muito programas de televisão mostram a vida de pessoas confinadas, sejam em ônibus, casas, apartamentos, fazendas ou prisões propriamente ditas.
Os programas pontuam extraordinária audiência injustificada pelo conteúdo apresentado. Justificada, entretanto, pela simbiose inerente a casa pessoa; sem desmerecer a curiosidade sobre a vida alheia, mas por se encontrar como igual confinado.
Sem participar de um reality show, estamos todos confinados. Confinados entre quatro paredes no décimo terceiro andar de um edifício, onde trabalhamos. Estamos confinados diante da tela do computador, sem ouvir a chuva ou sentir o vento escorrer pelo rosto. Somos confinados pela preocupação do dia a dia. Pela moeda instável, pela inflação dando o ar da graça, pela violência no lado de fora. Quando não, somos confinados dentro de nossos carros em meio à balbúrdia de um trânsito caótico.
Estamos presos, isolados pelo conhecimento de massa, enlatado, que a cada segundo nos é empurrado goela abaixo, sem tempo para digeri-lo ou degustá-lo. Não temos tempo de formar opinião própria e somos atropelados por outra informação que sobrepõe àquela; que por sua vez será contestada por outra em seguida.
Não concorremos a qualquer prêmio milionário. Nem temos nossa figura exposta em tudo quanto é meio de comunicação. Nem chamamos atenção em nosso humilde confinamento.
O pombo arrulhou atrás do ar condicionado. De repente lembrei-me da vida lá fora. Não contive o desejo de descer os treze andares que me afastavam do chão. Passei pela portaria às pressas. Ganhei a rua. Vi os pássaros brincando solitários nos bancos vazios de um jardim próximo ao prédio. O vento forte despenteou-me. Senti intensa felicidade ao ver as flores do ipê despregando de seus galhos. Uma chuva de flores na tarde abandonada. O sol reanimou minha pele fúnebre de escritório.
Na vida, quem é expulso do confinamento é quem vence.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O DIA NUBLADO

O dia nublado merece ócio. E há dois dias, não vejo o sol. A cidade parece mais calma. Os elevadores do prédio vazios. O trânsito de poucos carros lentos.
O dia nublado é prelúdio à preguiça. Trabalho rápido pela manhã com o fiapo do sol. Depois do almoço, com o tempo fechado, leio alguns textos. Navego displicente na internet, temeroso que o capitão cochilasse.
Nenhuma notícia chama atenção. Os emails estão congestionados. O último foi de dois dias atrás quando o sol ainda respirava. Como advogado, o primeiro compromisso do dia é checar as intimações, que recebo on line. As intimações vieram. Mas vieram descansadas, adormecidas nos autos. Sem necessidade da manifestação.
Nesta tarde nublada nada acontece. O telefone que pela manhã gritava desesperado por atenção, agora repousa em calma, recarregando as baterias. O cliente agendado liga desmarcando o compromisso. Um susto. O telefone morto dando sinal de vida. Fico numa felicidade triste e prossigo na minha contemplação do tempo.
O dia nublado é quieto. Não há a barulheira das buzinas na rua. Nem as conversas amistosas, nervosas ou misteriosas nos corredores. Todos estão com o silêncio colado à boca.
O dia nublado não quer nada da gente. E a gente também não quer nada. O dia nublado espera, no ventre, a chuva.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

TUDO FAZ SENTIDO

Sempre perguntei a mim mesmo o porquê dessa coisa de escrever. É como se, ainda no berço, o percevejo literário esperasse na espreita a oportunidade de me ferroar. E ferroou de jeito, que nem a realidade dura, nem o limite do portão de casa, me impediu de alçar grandes voos literários. Pelo menos na minha cabeça, na imaginação.  Porque escrever mesmo, só veio mais tarde. Na época em que fui mordido só conseguia morder a madeira do lápis, encher fraldas e babar. Uma imaginação limitada pelas grades do berço, mas uma imaginação onde ursos voavam rodopiando sobre minha cabeça. Limitada até que num Natal qualquer meu pai chegou com pernas de presente. Não que não tivesse as minhas, mas eram bambas de tal forma que não fosse meu pai arrastar-me pelo dedo, não teria deixado a cama. E é engraçado que até hoje meu pai precise arrastar meu irmão de 36 anos para que deixe a cama. Mas esta é outra história.
E afinal, quando comecei a andar comecei a conhecer coisas. Imaginar muito mais. De repente minha avó era o xerife que nos amarrava ao pé de uma árvore exigindo silêncio.
- Não aguento mais, acode aqui Bastião – e meu avô com o chapéu panamá ajudava a amarrar a gente.
E se não nos amarrasse ao pé da mesa, nós três botaríamos fogo na casa e seríamos lançados ao espaço sideral antes mesmo que minha avó conseguisse terminar o almoço.
O laboratório de fotografias de meu pai era um imenso centro de pesquisas científicas de onde, por pouco, meu irmão mais velho não inventou o primeiro computador, desbancando Bill Gates e Steve Jobs. Ou seria aquela sala um submarino com a luz de emergência vermelha acesa no canto?
E quando então aprendi subir em árvores, antes dos seis anos, que fique dito, furtávamos facas (se alguma criança estiver lendo esta crônica, prefira as facas sem pontas, de corte cego, para sua segurança) do armário da cozinha. E com o instrumento preso no elástico do calção, sem camisa e descalço, subíamos no pé de sete-copas. E de repente aquela árvore robusta e solitária na fachada da casa era a floresta, com onça, macacos e cobras. E a torneira aberta fazia o rio, com suas águas ferozes, saídas dos olhos da serpente.
Algum tempo depois ouvia meu pai reclamando da conta de água. Por que havia subido tanto? Mal sabia do tanto de água necessária para se criar um rio revolto. Mar eu não era capaz de imaginar. Ainda bem.
Por que escrevo? E a resposta me leva de volta à casa de minha infância, à cidadezinha onde o charreteiro espera paciente que o sinal verde do semáforo se abra. E enquanto espera traz versos na cabeça como se no colchão dele também houvesse aqueles insetos benditos.
Então quando chego em casa. Na casa aonde vivem meus pais, vejo minha mãe atarefada com as panelas, construindo castelos de pavê, coliseus de manjar, muralhas de carne assada empoeirada com farofas douradas, fortalezas de arroz.  E minha mãe serve à mesa sua obra trabalhosa e ficamos felizes em volta do prato.
Por que escrevo? E a resposta está ali, nos olhos esverdeados de minha mãe enquanto serve a mesa. Escrevo para distribuir felicidade.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A GATA

O casal empolgado na hora do amorzinho da madrugada.
- Mia! – ordenou o rapaz no silêncio da escuridão, tão alto que fez tremer o bloquinho de apartamentos.
- Mia! – a voz pedregosa despertou o sono tranquilo dos velhinhos. E seguiu o choro assustado de um bebê no andar de baixo.
- Mia, gata! – a ordem se repetia de um lado do apartamento, ora de outro, seguido sempre do miado tímido da moça.
Depois, ligado um chuveiro, cessou o miado.
Na manhã seguinte, ao abrir a porta do apartamento rumo ao trabalho, a moça encontrou na soleira da porta uma vasilha com leite e um punhado de ração deixado numa latinha.