O SORRISO BOBO
A
desgraça deixa compaixão por onde passa. E não precisa ser gigantesca para nos
arrebatar de piedade.
Dias
desses fui intimado para uma audiência. Tentativa de conciliação. Um casal
havia proposto ação de modificação de guarda contra meu cliente. O casal eram
tios da criança. O pai, meu cliente, estava preso por assalto, latrocínio e
mais uma infinidade de outros maus feitos. Por conta da prisão fui nomeado
curador especial para defender seus interesses.
Todos
estavam no Fórum. O casal com a criança e a advogada que os representava.
Estava sozinho e já perdia a esperança de que o requerido viesse, quando o
camburão encostou. Escolta armada. O homem era violento, muitos crimes nas
costas, diziam. Folha corrida comprida feito papel higiênico. Transferiram-no
para cadeia do Fórum até que o juiz determinou se instalasse a audiência.
Estávamos
sentados ao redor da mesa quando meu cliente entrou na sala, puxado pelo braço
por um guarda impaciente, enquanto o outro o acompanhava os passos com a mão
sobre o coldre.
O
homem estava algemado. E os pés acorrentados de modo que andava arrastando os
chinelos. Vinha de uniforme laranja do presídio e um sorriso bobo. Os olhos
faiscavam de felicidade. A menina desvencilhou-se dos braços da tia e correu
para o lado do preso que balançava seus guizos.
Enquanto
a menina corria, notei que o preso tinha o dente da frente quebrado, meio de
quina, o que lhe dava uma expressão abobalhada.
O
homem finalmente sentou-se ao meu lado com a filhinha entre as pernas.
Cumprimentou-me com o mesmo sorriso ingênuo que abriu ao ver a filha correr em
sua direção. Depois cumprimentou a irmã e o cunhado; e por fim, a advogada.
O
juiz o interrompeu para esclarecer o porquê havia determinado sua presença. O
preso concordava com o que o juiz lhe falava e notei que estava sinceramente
feliz por estar ali. O magistrado então mandou o escrevente redigir o termo e
retirou-se da sala. Os guardas relaxaram a postura. Um deles, inclusive,
debruçou-se sobre os cancelos que separava o juiz dos jurisdicionados,
observando o preso brincando com sua filha, que curiosa perguntava por que o
papai estava com aquelas pulseiras.
O
escrivão, percebendo a ternura do momento, deixou-se demorar um pouco mais na
redação do termo de audiência. O preso concordava em transferir a guarda da
filha para a irmã e o cunhado.
-
E a mãe da menina? – perguntei-lhe.
-
Sumiu doutor. Abandonou a menina comigo ainda bebê, e caiu no mundo. Coisa mais
triste, né, doutor; a mãe abandonar a própria filha – e abriu aquele sorriso
bobo, fixando em mim o olhar puro dos cães de rua.
Assinamos
o termo e os guardas voltaram a arrastar meu cliente para a cela. Mas antes de
deixar a sala, com o mesmo riso nos olhos, agradeceu:
-
Obrigado por me dar este momento feliz.
Aquela
tarde, saí mais leve do Fórum. E por muitos anos vou me lembrar do sorriso bobo
daquele homem, do olhar puro e inocente como o dos cachorros. E esta lembrança
me ajudará a manter a fé na humanidade.
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